O APRENDIZ DE SALVADOR DALI
Enquadro o céu. Prefiro não ser decifrável. Tolice é moldar por meios óbvios. Nem mesmo esconder traços. Como esconder as retas nas curvas? Linhas retas são cansativas; previsíveis!
Espaço, movimento, fecha-se o ciclo. Nesse convexo, dormem os sonhos. O sono se mistura na continua busca do inédito.
O espaço ainda me confunde. O tempo se alonga no traço que não é generoso. Muito menos explicável.
Por que derreter outros relógios no deserto?
A estática é a estética da estátua.
O mestre inquieto torce o longo bigode espanhol e diz:
- Por que o contorno? Não segue aquele movimento? Cada movimento dá o efeito aos possíveis e prováveis ângulos. - E a ética? - Na estética, sim. - Esteticamente imoral... - Conclua... esse... lamaçal!
Com olhar cortante, o aprendiz ajusta a tela entre as pedras.
- Enquadrar na horizontal, o surreal!... Recuo um pouco na transversal. Reforço a matiz. Matriz da paralela, perpendicular. Sensações! Sobreponho desejos. Realço sabores. Escondo alguns dissabores.
- Alguns? - Sim, alguns.
O mestre sorri ao dizer "bom aluno, bom aluno... Continue!"
- O passado calçou os pés. Libertei todos os futuros. - Todos?... - As particularidades não escondem as preferências das escolhas. - Ah!... O aprendiz é quase um mestre. - Refiz o que era impossível. Ficou irresistível. - Arrogância! Isso é opcional. Vai com alma nessa calma. - Agora é tarde para trocadilhos infames. As mãos voam da tela com trejeitos imperfeitos. - Esse é o começo desse conceito. - Pintar, e refazer a mesma janela até considerar bem mais que um simples conceito. - Ousado esse garoto... - Livro-me dos lânguidos e da languidez. Levo à livre loucura os lúcidos!
O mestre aplaude. - A partir de hoje tu és um... Mestre! - Obrigado! Nobre é não agredir a sua verdade que está implícita nos seus traços. Verdade rara e sensível. Devo-lhe o meu eterno respeito. Aceite os meus agradecimentos - e o aprendiz faz o gesto de reverência ao mestre do surrealismo.